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quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

JANEIRO DE 2056



 
A crónica desta semana na Revista Caliban:



Eles viviam em união de facto, há mais de quarenta anos, desde que se conheceram na colónia C2C de Marte. Uma tarde, quando se encontravam a descansar na sala, o sensor do sinal vital emitiu um alerta sobre ambos e ordenou que se dirigissem ao Centro de Atendimento de Longevidade Elevada. Aí chegados, a equipa de enfermeiros aplicou o scanner para leitura digital que elaborou, de imediato, o diagnóstico preciso, rigoroso e incontestado, com validação final do robot de serviço. Os dados foram comunicados à administração do Centro, aos Serviços Administrativos do Ministério do Bem-Estar Social, da Segurança Nacional, do Recenseamento Demográfico e das empresas de distribuição de notícias, consumo e fornecimento de serviços básicos, bem como à Associação de Supervisão de Robótica.
No Centro de Atendimento de Longevidade Elevada, foi-lhes comunicado que a gravidade da doença detetada, apresentava uma reduzida esperança de vida, não ultrapassando, com cem por cento de probabilidade, os sessenta dias, o que implicava o uso de medicação e meios técnicos de suporte artificial de vida, muito avultados, só autorizados, em casos excecionais, a casais jovens e crianças. O robot elaborou o orçamento e providenciou a autorização e impressão de dois Vauchers para transporte e comida e um item de consumo indiferenciado, com validade de doze horas.
Apanharam um fast-táxi e na loja estatal de consumo standard-hermético, perto do edifício onde moravam, esgotaram o valor do Vaucher na compra de faisão, caviar, trufas, um néctar da Provença premiado com várias medalhas de ouro e um ramo de flores. Já em casa, o robot Homefriend da série II encheu uma jarra com água para colocar as flores, pôs a mesa e foi abrir as camas. Comeram em silêncio, foram deitar-se, despediram-se e o prestável Homefriend série II desligou o serviço de domótica. Na manhã seguinte, o Homefriend série II abre a porta a dois homens de farda azul-marinho, que se apresentam como funcionários da Secretaria de Estado da Orçamentação do Bem-Estar Social, com um tablet, para leitura de uma comunicação do secretário superior e reconhecimento facial.
Seguindo os procedimentos, é-lhes aplicada uma injeção-laser com um composto atordoante de não-retorno.
Morrem em paz e sem dor. Com a ajuda do prestimoso Homefriend série II enfiam os corpos dentro de sacos pretos, selam-nos e colocam-nos numa carrinha de transporte e combustão. Contornam o quarteirão e entram na marginal junto ao rio. Os corpos são incinerados em andamento. Param junto ao Padrão Comemorativo da Colonização de Marte e atiram as cinzas ao rio. Os dois funcionários voltam a entrar na carrinha de transporte e combustão, leem no computador de bordo a nova mensagem que chegou da Secretaria de Estado da Orçamentação do Bem-Estar Social, fazem uma curva de cento e oitenta graus e seguem em direção à casa de uma mulher de trinta e cinco anos, que tem um filho menor com cancro…


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

CHOQUE EMOCIONAL



Brad Yeo
A crónica desta semana na Revista Caliban


Um dia, ao acordar, sentiu um zumbido no ouvido direito, uma espécie de filtro que o impedia de ouvir com clareza e uma tontura que rapidamente degenerou em vertigem.

Virou-se para o lado esquerdo e colocou as mãos sobre a cabeça, com sorte e um pouco mais de descanso, talvez o zumbido e a vertigem desaparecessem, mas não…
Duas horas depois continuava inquieto e às voltas, com a mulher aborrecida,que nem iam à praia nem nada e o miúdo que não saía do computador e ele a dormir, a bocejar, tonturas, vertigens e o que mais viesse, que fosse às urgências, que aquilo de ficar deitado o dia todo num sábado de sol era coisa de velhos.
E ele foi derreter a existência nas quatro horas previstas de espera, impressas nas letras miudinhas da senha da triagem. A médica era simpática e estava com boa disposição. Exames, análises, testes, catéteres, soro e perguntas, muitas perguntas.
“Choque emocional!
 É stress!
Tem alguma coisa que o atormente? Anda a fazer alguma coisa contrariado?”
Não! Tirando o pormenor de me encontrar sem trabalho há mais de um ano, frequentar uma inócua formação do centro de emprego depois de vinte cinco anos de devotada dedicação ao banco, onde me dilui no tratamento de avales, letras e livranças e que só suportava pela ênfase dada por amigos e vizinhos aos juros baixos, férias e regalias dos SAMS,
que até podiam aproveitar e comprar uma casa maior pelo preço de um T qualquer coisa em Cascais, ter filhos, cão, periquito, escritório, marquise e ainda sobrava espaço,
e de ter acordado, só agora, numa assoalhada da andropausa, sem força nem paciência para as pequenas arrelias da vida, com despeito pela futilidade de quem vivia alienado nas manhãs da TV a bater palmas e a ganhar robots de cozinha… Não! Tirando isso não tenho nada a atormentar-me.
Betarsec debaixo da língua e mais uma drageia para a vertigem durante uma semana e fazer exames daqui a cinco dias”.
Passaram três meses, continuo tonto e com zumbidos, sem a mesma força nem disponibilidade para derreter mais quatro horas, do precioso fio do tempo, no hospital, que isto da existência, também tem o seu preço.
Não doutora, o único choque emocional é o da minha cabeça, sem ginástica suficiente para perceber a dinâmica do mundo, pequenino e cinzento, que se fecha todos os dias, um pouco mais, mesmo à minha frente…

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

FRAGILIDADE



Antony Goomley

* A minha crónica desta semana na Revista Caliban

https://caliban.pt/fragilidade-1e0185eeb015#.hkenojp77



O mundo está frágil, de uma fragilidade constante que compromete a nossa segurança e nos faz distrair com minudências. Torno-me claro quando escrevo, de forma coerente, sobre a memória que me chega às prestações ou é o dia que se torna leve quando junto palavras para recordar coisas boas e outras assim-assim, como o senhor Manuel a chorar mágoas, no regresso apressado de Angola resumido à categoria de sonho, com léguas de distância, trinta anos e mãos vazias.
Trinta anos depois já era muito tarde para se recomeçar o que quer que fosse…
muito tarde”,
expressão castradora, por sinal, o caminho mais curto e irreversível para acabar de forma atabalhoada e peculiar na inércia que teima em acompanhar-nos ao longo de séculos.
Aos poucos, acabamos por voltar sempre ao sítio das recordações, novelo de corda, sem fim, afundando-nos lentamente, neste cais, parapeito imenso, onde apodrecemos numa espera antiga e viciada, sem vontade ou iniciativa, sem alguém que ponha mão nisto, que pense por nós, com ideias e energia suficiente para acabar com a nossa desgraçada facilidade com que continuamos alimentar a mediocridade endémica, que se põe em bicos dos pés para “inglês ver, sequela da orfandade adquirida em Alcácer kibir e que continuamos a amenizar. O paradigma da sociedade mudou, mudou-se, mudou-nos, inebriados que estávamos com o bem-estar, o dinheiro e o conforto a quem prestamos vassalagem descarada. A superficialidade e o ressentimento mantêm-nos ocupados. Tornámo-nos mutantes e vivemos vidas de empréstimo nas novelas ao sabor de cada novo episódio. Fazemos sacrifícios, gozamos com a tragédia, não queremos chatices, evitamos o confronto, aceitamos tudo, esfregando as maõzinhas como o Eusébiosinho do Eça e assim nos perpetuámos e perdemos relevância no grande drama histórico universal a gastar tempo com insignificâncias, tudo aconchegado pela falta de leitura e reflexão, aceitando regras com remoques, receita ideal para o pandemónio em que a nossa existência se transformou e que, paulatinamente, ajuda a desmantelar a frescura, a personalidade e a nossa vontade colectiva, se não nos desfragilizarmos a tempo…



quinta-feira, 15 de setembro de 2016

DESENHO



A minha crónica na revista CALIBAN 

https://caliban.pt/

Quadro de Gilberto Gueereiro - pintor artístico catch@live.com.pt

Ainda não aprendi a acreditar em Deus. Vou do céu ao inferno num fósforo, mas penso pela minha cabeça sem cair nessas tretas da Virgem, bonita, de vestes brancas, de coração aberto para nos salvar das chamas, das profundezas do mal e de muitos outros suplícios por via das orações diárias com silícios e urtigas esmagadas nas mãos em concha. Quanto muito, poderia andar à boleia do catecismo soft a imaginar, sem grande dificuldade, feiras de santinhos, relíquias, amuletos, crucifixos, velas de cor e pagelas com hóstias coladas a fazer publicidade à padaria portuguesa. Sou um cínico, apesar disso consigo andar em paz, algumas vezes, sossegado, enquanto a chuva desaba nos plátanos e nos aciprestes da mata que vejo das traseiras da minha casa de fim de semana. Às vezes gostava de me encontrar com o passado, mais ou menos no momento em que, naquela infância despreocupada e crente, as minhas dúvidas deixaram de ser brincadeira e se tornaram coisa muito séria. Normalmente é assim, temo-nos em conta de boas pessoas apesar do azedume, do rancor e da inveja. Sem darmos por isso, acabamos numa angústia, a circular em torno do enfado com que contamos as mesmas histórias, pesadelos e mazelas. Gosto de olhar pela janela e adivinhar as horas. Devem ser quase umas seis da manhã, o rio ainda não perdeu o tom escuro riscado pelo fio de prata da lua cheia. As pessoas começam a formigar nas ruas para o emprego, os telhados a abrigar murmúrios e restos de sono de gerações, a igreja com a sua torre lá no alto, a acumular séculos de fé e pedras e tudo continua sereno e inalterável, como se a vida fosse um percurso linear, um equilíbrio de mudas cumplicidades, a que assistimos, impotentes, antecipando acontecimentos. Era isso o destino, talvez. Lembro-me de pedalar num triciclo azul, ferrugento, com assento de madeira áspero e cheio de falhas e gretas. A vizinha deixava-me ir brincar para o quintal e eu ficava ali ás voltas, às voltas, acreditava que se conseguisse fazer umas mil voltas ia ter ao centro da terra, depois ficava tonto e cansava-me e dizia para mim próprio que amanhã ia conseguir ou continuar, uma vez que as mil voltas não precisavam de ser todas no mesmo dia… E sempre que volto à pureza destas memórias esqueço-me de que a morte existe… A maior parte das vezes faço-me de estúpido e percebo que pode ser muito divertido. É um refúgio como outro qualquer. Toda a gente deveria ter uma oportunidade para ser feliz e, acredito, que a minha ainda esteja para vir, apesar de me distrair com o supérfluo e ficar sem vontade para o que realmente me poderia realizar. Tarde ou cedo, a saudade vem sempre para conversar comigo, tudo o mais é ruído num passado que nunca deixou de ser real e num presente que ainda não percebi bem se é desenho ou ficção.